(Frans) Ainda mal me refizera do trauma do nascimento e veio a morte visitar-me. Na forma, não sei, de uma dessas maleitas que ceifavam precocemente as crianças naquele tempo, ninguém sabia de onde vinham, se eram coisas do Demo, se castigo de Deus, se destino, ou maldição ou sorte. Não parecia mal de bruxaria, as feiticeiras territorialmente competentes nada poderiam fazer contra tão sérios sinais de morte. Recorrer ao médico era impossível, onde encontrar um assim de repente?… O doutor visitava a aldeia uma vez por semana para administrar os cuidados básicos de saúde a toda a população. As consultas eram efectuadas na Casa do Povo. Se se tratasse de uma doença crónica ainda vá, apesar de ser necessário marcar vez com muita antecedência. Mas uma coisa assim, de repente, não havia quem acudisse.
Minha mãe, resignada como tantas outras antes dela, resignada e cheia de temor de me entregar às forças escuras que eternamente corroem as alminhas que morrem sem serem aspergidas pelas águas do baptismo, correu a casa do Padre Amândio, na noite fechada, guiada pela claridade das estrelas. Era então a iluminação disponível, o subtil brilho dos globos celestes ou chama trémula da indispensável candeia onde um pavio de algodão se alimentava de azeite. Já havia luz eléctrica na aldeia, mas durante a noite os postes de iluminação calavam-se impotentes perante a escuridão estridente da noite, e tudo era trevas e temor e escuridão.
Eu não sabia, eu nem gente era ainda, mas vinha não sei de onde impregnada de mal. Por entre o âmnio e o sangue, as hormonas, as contracções, o choque e o stress do nascimento, parece que um apêndice áscio invisível - a alma - vinha infectado com a gangrena do pecado... mais tarde soube que por culpa de uma tal de Eva se enrolou com um Adão, uma maçã e uma cobra falante.
Sistema complicado, ninguém se lembrou do princípio da intransmissibilidade da pena, ninguém se lembrou na altura, e agora ninguém parece importar-se. Enfim, adiante. Era pois necessário, segundo a Santa Madre Igreja, abluir-me com água benta. Depois sim, tinha uma autorização oficial, um passaporte válido, um visto carimbado para entrar no reino dos céus. O Padre Amândio lá fez as rezas e lá me colocou na lista daqueles a quem Belzebu não pode reclamar sem luta. Eu seria aquilo a que chamavam “um anjinho”.
Não sei o que disse à morte. Não sei o que lhe disse, que razões lhe dei, mas ela deve tê-las pesado com cuidado e, cheia de branco e de mistérios, como quem tem a certeza da posse final de todos os destinos, afastou-se. Tão misteriosamente como apareceu, o mal que ameaçava a minha frágil existência desvaneceu-se sem deixar sinais nem razões da sua vinda ou da sua partida.
O baptismo a meio da noite assim a pressa não era prática comum, o Padre Amândio ainda contestou mas nenhuma razão demoveu a minha mãe. Mais estupefacto ficou o paciente Padre quando, passado pouco tempo a minha mãe lhe foi dizer que teria de realizar um baptismo como deveria ser. Um baptismo assim, a meio da noite, sem padrinhos nem testemunhas, sem uma fatiota a rigor, sem os convidados, sem a festa, não era baptizado nem era nada. Estava bem para um anjinho que ia ter com Deus, mas para uma criança que enfrentava agora a perspectiva de uma vida exposta às pressões do mundo e às tentações do pecado, com certeza que uma coisa assim feita a pressa não seria suficiente. O Padre Amândio considerava-me baptizada e recusava-se a realizar outra cerimonia mas a minha mãe nunca aceitou uma recusa a algo que considerava justo. O baptizado oficial acabou por ser realizado no Inverno, no dia vinte e cinco de Dezembro.
Restabelecida dessa ameaça de uma morte prematura, fui vivendo devagarinho como vivem os seres pequenos, sem cuidados nem consciência do mundo ou de mim. Fui sorvendo os dias, construindo a minha morada, o meu corpo e eu nele.
Labels: Baptismo, Carção, inferno, pecado