Thursday, October 20, 2005

Carçao: Judeus e Cabrões

A sociedade dividia-se em dois grandes grupos: os Cabrões e os Judeus. Os primeiros eram tradicionalmente agricultores e viviam sobretudo no centro da aldeia, concentrados à volta da Igreja. Os Judeus constituíam um grupo heterogéneo que incluía comerciantes e prestadores de outros serviços (sapateiros, taberneiros, ferradores, barbeiros, etc). O nome era apenas um eco distante do passado, de quando os Judeus perseguidos se refugiaram pelas aldeias recônditas porque não se mantinha nenhuma tradição relacionada com a religião judaica. De qualquer modo, cada grupo considerava uma ofensa pertencer ao outro e disparava o insulto, acrescido de vernáculos floreados, sempre que a ocasião se proporcionava.
Nós éramos, por tradição, "Judeus". O meu avô era um sapateiro-taberneiro pobre. O ofício de sapateiro era uma arte de família, passada de geração em geração, que ele também tentou transmitir aos filhos. O tio Albino em Santulhão e o meu pai na aldeia exerciam a profissão, remendando sapatos ou fazendo botas, sapatos e sandálias.
A mesa do ofício era uma banca tosca repleta de ferramentas, moldes de couro, pregos, brochas de diversos tamanhos, pez, graxa, sobelas, atilhos, linha espessa e encerada. A linha vinha em novelos com uma figurinha sobre um fundo vermelho num dos lados à qual o meu pai chamava a “Santica do Codilho” e que servia de paga para as mais variadas tarefas. Quando ele precisava de alguma coisa dizia, vai lá chamar sicrano que eu guardo-te a santica do codilho. Não sei qual a importância da figurinha, porque era tão essencial obtê-la ou mesmo para que a usava. Talvez o facto de o meu pai ser o único sapateiro e consequentemente eu a única a poder obter tão precioso bem. Guardava religiosamente as santicas e exibia-as perante os outros com satisfação e orgulho antes de se perderem nos bolsos das calças na lavagem seguinte.
À volta da mesa distribuíam-se os moldes de madeira em variados tamanhos e os diversos materiais, solas de borracha já prontas a ser usadas ou couro rijo e espesso onde se colocava o molde e cortava o tamanho adequado da planta do pé, cabedal curtido, mais fino para a parte superior, em preto ou castanho para responder aos gostos dos fregueses.
A taberna, que eu já nao conheci, não passava de um rés-do-chão mal iluminado, com chão de terra batida e uma arca velha a servir de balcão. Os clientes bebiam o vinho ou a aguardente pelos poucos copos disponíveis que eram depois enxaguados na água dum recipiente espanhol.

5 Comments:

Blogger isabel mendes ferreira said...

um texto "esclarecidamente" atento. bjo. Rosário.

3:06 PM  
Blogger Elipse said...

Quem és tu, mulher de palavras-memórias, de cores fantásticas e sensibilidade adivinhada até nos intervalos da escrita. Em boa hora me "visitaste". Quero ter tempo para ler tudo...
:)

4:00 PM  
Blogger mfc said...

Continua a contar-nos estas histórias de verdade...
Estive a ver as fotos que editaste... estão um sonho!
Parabéns pelas fotos e pelos textos...

4:51 PM  
Anonymous Anonymous said...

Bela memória!

5:46 PM  
Blogger hfm said...

Belo texto. Obrigada pela visita.

6:18 PM  

Impressoes

<< Home