Wednesday, October 26, 2005

Coisas do dia a dia

A vida na aldeia era feita de trabalho árduo, de sacrifícios indizíveis e de privações maiores que a alma. As pessoas viviam subjugadas por dois monstros que não as deixavam ser gente.
O corpo de um camponês não lhe pertencia. Era um empréstimo precário da terra . E todos os dias, desde o arrebol da aurora até que os últimos raios de sol se esgotavam de cansaço no firmamento, eles pagavam essa dívida, com o suor árduo dos dias intermináveis, com alegrias breves, com lágrimas de esperança ou de desapontamento, com o sangue, porque muitas vezes, pelos penhascos, em árvores possantes, se colocavam em posições precárias para não deixar nada, arriscavam a vida por muito pouco.
O espírito, mirrado pela ignorância, era dominado pelo peso de superstições e de medos fermentados no nevoeiro dos séculos, transmitidos por uma tradição oral fecunda e por um temor oblíquo às penas do Inferno.
Que podia uma alma a quem não era permitido questionar senão aceitar servilmente todos os dogmas e repetir as litanias ouvidas anos após anos? O Latim só tinha sido substituído pela língua materna poucos anos antes na prática litúrgica. Todos sabiam de cor os dizeres, podiam recitar numa ecolalia cega todas as partes da missa num latinório empenado, mas evidentemente não chegavam a digerir o significado das palavras. Ouviam as parábolas das Escrituras, as cartas aos Apóstolos, os sermões, por entre o sono que atentava, dizendo "amém" quando era para dizer, sentando-se, ajoelhando-se e levantando-se maquinalmente ou como resposta a cotovelada aguda de um vizinho mais atento. Mesmo com tudo dito em Português, duvido que entendessem a maior parte das palavras e dos ensinamentos que se pretendiam transmitir. A qualidade dos sermões era avaliada pela teatrealidade convincente do pregador, pelas pausas cheias de significado, pelo fervor arrebatado da descrição do mal e do bem, pela quantidade de palavras finas e sem significado mas que soavam como mel aos ouvidos empedernidos. Mas também, creio que a compreensão e a interiorização não importava muito, o mais importante era demonstrar aos outros, com a simples presença, que eram tão dignos do céu como outro qualquer. Assim repousava a consciência sob a sombra caridosa da benevolência divina.
(Quadro: A colheita, Silva Porto)

6 Comments:

Blogger Inha said...

Parabéns Rosário! Belíssimo texto!!! E obrigada pelo quadro do Silva Porto que sou fã dos naturalistas!;)

10:07 AM  
Blogger aDesenhar said...

olá
este título chama a atenção e não resisti a dar uma espreitadela.
em boa hora o fiz, porque o texto é simplesmente soberbo.

:)

ps: vim até aqui através desta página
http://www.49media.com/... sinal que na www ainda se encontram coisas boas, onde vale a pena perder uns minutos numa boa leitura, como é o caso do teu blog. :)

10:25 AM  
Blogger hfm said...

Gostei. Como gosto muito do quadro tb ainda há poucos dias colocado no meu blog Alicerces. Empatias.

10:33 AM  
Blogger isabel mendes ferreira said...

Pois....é um texto excelente para um excelente quadro....bjos... ( e sou de todas/todos os lugares:)).

5:20 PM  
Anonymous Anonymous said...

Belíssimo texto a nos lembrar a nossa própria ignorância. Oportuno, pois a luz que tuas palavras lançam sobre todos nós será sempre necessária - num mundo em que a maioria não consegue enxergar como igual -, todo e qualquer ser humano, apesar da pluralidade cultural.
Deixo o meu abraço fraterno.

6:24 PM  
Blogger Elipse said...

Estas memórias prendem-me: à terra, às árvores, aos penhascos, aos raios de sol, às impressões, à escrita...
Penso que tens nelas (memórias) material para romance. E tens em ti a capacidade para ficcionar a partir das tuas histórias e das tuas visões desse real aqui desenhas.

10:30 PM  

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