Friday, August 26, 2005

A procissao




Ao fim da tarde cumpriam-se as obrigações religiosas, uma procissão de velas seguida de missa ao ar livre na Capela da 5 Marinha, nas Fontes.. Os andores saíam da igreja, davam a volta ao povo entre velas, terços e cânticos desencontrados.
A Senhora das Graças, figurinha magra e elegante, numa pose encantadora, coberta recatadamente com um vestido pérola bordado a ouro que deixava entrever as formas singelas dum corpo feminino. Sobre os ombros singelos um enorme manto azul celeste onde brilhavam as estrelas do céu, descia em pregas largas protegendo-lhe as costas delgadas. Do cimo de um andor alto e elegante, adornado com imensas flores e fitas de cetim, esmagava com o pezinho delicado a terrível víbora tentadora de mortais, enquanto lançava um olhar condoído e humedecido ao seu redor.
Mas a Senhora do Rosário, uma matrona obesa, esculpida com certeza numa altura em que os atributos físicos das mulheres perfeitas continha um pouco mais de abundância, não faltava ao compromisso. Lá seguia no respectivo andor, com o seu rosto estático e o imenso corpo de pau pintado em tons dourados, muito esburacado pelo bicho da madeira que não se comovendo com a imaculabilidade da personagem se atrevia a lavrar extensos sulcos na sacrossanta figura .
São Roque também comparecia, a imagem guarnecida de uma bengala e de uma cabaça adicionais, e escoltado por um fiel cachorrinho. Seguia-o o Senhor dos Passos, representação apaixonada e violenta do momento em que o Cristo sucumbiu sob o peso da pesada cruz. Figura enorme, em tamanho real, coroada com uma coroa de espinhos que rasgava chagas escarlates na testa, e sempre coberta com uns mantos lilases imensos. Não imagino nenhum artista perder uma oportunidade de expor a nudez de um corpo perfeito, e no entanto nunca vi a imagem sem estar vestida. Imagino que a nudez fosse um pouco excessiva, capaz de suscitar desejo em vez da esperadas piedade e compaixão, só assim se explicam aquelas túnicas enormes cujas mangas tombavam e cobriam as mãos do condenado.
No Largo das Fontes os andores eram pousados no chão e aguardavam pacientemente o decorrer da Missa. Por entre as velas acesas, para as beatas que se concentrava à frente e para os restantes que se distribuíam pela periferia, o padre proferia o sermão que empolava as qualidades da virgem, ano após ano, com o mesmo entusiasmo arrebatado.
Oficialmente, na nossa aldeia, a mãe do Salvador era sem dúvida a Senhora das Graças. Podiam em outros lugares, até mais santos e possuidores de mais autoridade na matéria, reclamar a maternidade do Salvador para outras Senhoras. Mas ali era assim, "verdade verdadinha"!

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